quarta-feira, 11 de julho de 2007

No campo da intolerância



por Phydia de Athayde

O futebol, paixão nacional, abriga os preconceitos mais retrógrados

Nas últimas semanas, uma polêmica no meio esportivo escancarou, mais uma vez, como o futebol, paixão e símbolo da identidade brasileira, também é fértil campo para preconceitos e intolerâncias.

“O futebol é um esporte de homens, feito por homens e para homens. É o mais conservador dentre os esportes. O gênero masculino o elegeu para ser o espaço da validação da masculinidade socialmente permitida e criará sérios problemas para aqueles que não se identificarem com o gênero masculino. Se algum jogador assumir a homossexualidade, dificilmente sobreviverá no futebol”, analisa a professora Heloísa Reis, do Grupo de Estudos e Pesquisas de Futebol da Unicamp. E conclui: “Da forma como a questão está espetacularizada, dá para imaginar o que aconteceria”.

A verve fascistóide do futebol ganhou ares de espetáculo televisivo depois que um boato alcançou o grande público. Na segunda-feira 25, o jornal popular paulistano Agora noticiou que um jogador de um grande clube assumiria ser gay em entrevista no programa Fantástico, da Rede Globo. No dia seguinte, a história chegou à TV Record. No intervalo de seu programa futebolístico Debate Bola, que é ao vivo, o apresentador Milton Neves atiçava os participantes com a suposta revelação. Assim que entrou no ar, inquiriu um diretor palmeirense: “É do Palmeiras o jogador que vai assumir na televisão que é homossexual?” De supetão, o dirigente respondeu: “Não, o Richarlyson quase foi do Palmeiras”. Transformou o que era zumbido em urro estrondoso. Estava feito o estrago. Menos para Milton Neves, que deve ter ganhado alguns pontos de audiência com a polêmica que gerou.

Nunca houve entrevista agendada, também não há revelação a ser feita. O advogado de Richarlyson, Renato Salge, apresentou uma queixa-crime por injúria contra o dirigente palmeirense e pretende entrar com uma ação cível por danos morais e materiais, com pedido de indenização. A Justiça foi a trilha escolhida para driblar a convulsão provocada pela mera associação de dois termos: futebol e homossexualidade.

O jogador são-paulino teve a sabedoria de pouco comentar, declarou-se chateado e considerou a atitude do palmeirense “leviana”. Os pais, pressionados a dar declarações, disseram desde “está na cara que é despeito do Palmeiras” (o pai) até “meu filho não tem esse tipo de problema” (a mãe). Lela, pai de Richarlyson e ex-jogador de futebol, acertou a trave ao dizer que “o futebol é um meio sujo”. Não que não seja, longe disso. Mas é pior. “A corporação do esporte é quase tão conservadora, para não dizer reacionária, como a dos militares”, observou Juca Kfouri na Folha de S.Paulo.

O sociólogo alemão Norbert Elias é referência na análise de como o esporte é parte de um processo civilizador e escreveu: “A introdução de normas amenizou a violência nos esportes, controlando impulsos, sublimando desejos e criando condutas em conformidade com as regras. Tal mudança resulta do processo de institucionalização e racionalização das práticas esportivas, que é inerente ao processo civilizatório”.

Além de civilizador, o esporte é também a esfera em que, em tese, compete-se em igualdade de condições. É, ou deveria ser, espaço de comunhão. Por que, então, presta-se a exacerbar os preconceitos mais retrógrados? No início do século, o futebol brasileiro representava a elite e não admitia negros ou mulatos em seus quadros. A barreira começou a se quebrar quando o Vasco começou a vencer partidas com um time com brancos, negros e mestiços. Ainda hoje, em pleno século XXI, mulheres em campo, atletas ou na arbitragem são vistas com má vontade pela maioria.

O coordenador do Núcleo de Sociologia do Futebol da Uerj e professor da Universidade Salgado Oliveira, Mauricio Murad, estuda o meio desde 1990. “O futebol traduz as contradições sociais, mais do que o esporte, porque é um grande fenômeno cultural, revelador das raízes formadoras da sociedade. Infelizmente, nossa sociedade é muito preconceituosa”, analisa Murad. O sociólogo crê, no entanto, que haja alguma mudança em curso: “Há colégios de primeiro e segundo grau, no Rio de Janeiro, onde as meninas têm não só jogado futebol como pleiteado a realização de torneios femininos. Isso pode ser o começo de uma nova cultura”.

Ainda que algo possa mudar, não é exagero imaginar que levará mais um século para atingir o futebol profissional. No livro A Violência e o Futebol (Editora FGV), a certa altura, Murad comenta a profundidade das raízes do preconceito no esporte. A CartaCapital, o sociólogo diz que adversários são implacáveis ao usá-lo como arma: “Um fato mal observado ou distorcido ganha asas, torna-se verdade. Basta um jogador ser bonito, ou ter cabelos longos, ou ser mais frágil fisicamente, ou simplesmente ser habilidoso para estar sujeito a isso”.

Proliferam casos como o de Heleno de Freitas. Nos anos 1940, o atacante do Botafogo com pinta de galã, que entrava em campo com gel nos cabelos e vestia-se bem fora dele, foi vítima desse tipo de chacota. De personalidade instável, era provocado pela torcida adversária com o apelido de “Gilda”, personagem que Rita Hayworth encarnava com enorme sucesso no cinema. Ao escutar o coro a repetir “Gilda, Gilda”, a instabilidade emocional aflorava. Desequilibrava-se, brigava, caía de rendimento. Ainda assim, Heleno de Freitas foi ídolo e é um dos maiores heróis da história do Botafogo.

Nos anos 1980, o goleiro do Cruzeiro e do Flamengo, Raul, heterossexual, também recebeu apelido com nome de mulher. Ficou conhecido como “Wanderléia”, que fazia sucesso à época da Jovem Guarda. Raul usava os cabelos longos e loiros. Certa vez entrou em campo com um agasalho colorido (diferente do padrão preto ou cinza para goleiros) e bastou. Em entrevista à Folha, falou sobre o apelido: “Aquilo me incomodava. E quem me ajudou foi um psicólogo. Ele falou que a torcida tentava me desestabilizar”. Raul é o secretário de Esportes de Curitiba e defende o direito de os homossexuais jogarem profissionalmente. “O sujeito não pode deixar de ser jogador pela opção sexual”, disse.

Em 1990, Justin Fashanu, jogador do time inglês Nottingham Forest, assumiu ser homossexual. Em 1981 ele já quebrara um preconceito ao ser o primeiro jogador negro a custar mais de 1,5 milhão de euros. Quando revelou a orientação sexual, a carreira estava em declínio. Foi muito criticado e, oito anos depois, em 1998, cometeu suicídio.

No Brasil, o único atleta que assumiu a homossexualidade jogava vôlei. Luiz Cláudio Alves da Silva, o Lilico, tornou a questão pública ao denunciar a discriminação que sofreria dentro da seleção brasileira. Em quadra, porém, as provocações das torcidas adversárias lhe serviam de estímulo. Embora não tenha tido grande sucesso com a seleção, Lilico seguiu a carreira profissional sem maiores problemas. Em janeiro deste ano, faleceu em decorrência de um derrame sofrido em dezembro de 2006.

“O homossexualismo no esporte só é problema quando significa assédio aos jovens, algo muito comum, e escondido, nas categorias de base. Porque, com freqüência, menores são forçados a fazer o que não querem”, pontuou Kfouri. Nos gramados, a nuvem do preconceito e da intolerância faz de qualquer um mais uma vítima, seja o homossexual, seja o diferente.

A ninguém interessa a intimidade de Richarlyson. Antes veladamente e, agora, escancaradamente, ele já sofre injustamente. Há cerca de dois meses, em uma conversa informal com CartaCapital, Richarlyson não quis participar de uma possível reportagem sobre preconceitos no esporte. Considerava que isso traria muito mais prejuízos do que vantagens. Não valia a pena cutucar o vespeiro.


Retirado de Carta Capital
Comentários
2 Comentários

2 comentários:

  1. Falar nisso, a Playboy da Ana Paula tá show de bola! Tem uma foto em que ela, literalmente, escancara. Podia bandeirar na Paulo Francis.

    ResponderExcluir
  2. Falar nisso, a Playboy da Ana Paula tá show de bola! Tem uma foto em que ela, literalmente, escancara. Podia bandeirar na Paulo Francis.

    ResponderExcluir